quarta-feira, 15 de novembro de 2006

Opiário

(Ao senhor Mário de Sá-Carneiro) É antes do ópio que minha alma é doente. Sentir a vida convalesce e estiola E eu vou buscar ao ópio que consola Um Oriente ao oriente do Oriente. Esta vida de bordo há-de matar-me. São dias só de febre na cabeça E, por mais que procure até que adoeça, Já não encontro a mola pra adaptar-me. E por mecanismo de desastres, Uma engrenagem com volantes falsos, Que passo entre visões de cadafalsos Num jardim onde há flores no ar, sem hastes. Ao toque adormecido da morfina Perco-me em transparências latejantes E numa noite cheia de brilhantes Ergue-se a Lua como a minha Sina. Eu, que fui sempre um mau estudante, agora Não faço mais que ver o navio ir Pelo canal de Suez a conduzir A minha vida, cânfora na aurora. Perdi os dias que já aproveitara. Trabalhei para ter só o cansaço Que é hoje em mim uma espécie de braço Que ao meu pescoço me sufoca e ampara. Por isso eu tomo ópio. É um remédio. Sou um convalescente do Momento. Moro no rés-do-chão do pensamento E ver passar a vida faz-me tédio. Fumo. Canso. Ah uma terra aonde, enfim, Muito a leste não fosse o oeste já! Pra que fui visitar a Índia que há Se não há Índia senão a alma em mim? Levo o dia a fumar, a beber coisas, Drogas americanas que entontecem, E eu já tão bêbado sem nada! Dessem Mehor cérebro aos meus nervos como rosas. Escrevo estas linhas. Parece impossível! Que mesmo ao ter talento eu mal o sinta! O facto é que esta vida é uma quinta Onde se aborrece uma alma sensível. Álvaro de Campos

2 comentários:

Anónimo disse...

Eu é mais Florbela. Atenção, não confundir com Floribella! :S

abelha maia disse...

fica descansada que eu jamais pensaria uma coisa dessas sobre ti...jamais!!!