e, num ápice, chegou 2020.
e, num ápice, a minha vida já ocupou mais de 4 décadas no mundo. uma luz pequenina neste mundo tão imenso. vivi tanto e lembro-me de tão pouco. sei (porque sinto!) que tive uma infância feliz. tive a sorte de nascer numa família rodeada de amor. tive o privilégio de conhecer 3 dos meus avós e de ter sido a Anita durante o tempo que eles duraram. tive a honra de ser educada (e mimada!) por muitos adultos. tive o infortúnio de os ver partir demasiado cedo e não ter podido dizer adeus. visitei os 3 no hospital e no lar, onde passaram (uma vez mais) demasiado tempo até que a vida os permitisse partir sem mais dor. tinha eu 12 anos. e a pureza da infância ganhou uma cor mais escura, ganhou a cor da perda de uma parte de mim. deixámos de ter um quintal de fim de semana onde corríamos livremente e podíamos cair sem qualquer preocupação. havia tantas bocas para nos sarar as feridas! deixámos de ter as cerejeiras de primavera para trepar e chegar lá acima e comer, ainda na escada, aquele fruto que ainda me faz brilhar os olhos pelas memórias que carrega. mas os cheiros. ah! o aroma a lareira acesa na cozinha (sem as usurpadores cassetes que nos limitam o olfato!), as batatas fritas em azeite, o feijão cozido em panela de ferro. o avô Zé sempre de braços abertos e de olhos azuis raiados de felicidade. a avó Ana, com quem a vida foi demasiado injusta e não conseguia demonstrar mais. mas era boa, a avó. a avó Luzia, que foi tantas vezes primeira e segunda mãe. tinha os olhos claros como a água quando é pura e cristalina, o cabelo metricamente preso num chinó, que quando solto lhe passava a cintura. tinha cara e cheiro de avó e um colo que nunca vou esquecer. o corpo nunca esquece o calor que o fez feliz. às vezes, quando a saudade aperta e a memória teima em não cooperar com o que precisamos sentir, fecho os olhos e o colo está lá. o colo, o cheiro, o mimo. o amor!
9 anos depois... 9 anos! 9 ano depois partiu o pai. tão pouco tempo depois a minha alma mirrou-se. ficou pequenina. fiquei vazia. demorei mais de uma semana a permitir que as lágrimas me caíssem. segurei-as até ganhar coragem para me sentar num muro frio do cemitério a olhar um pedaço de terra com relevo, onde já não havia nada mais que um corpo. já não era o meu pai. o meu pai tinha partido alguns dias antes de partir. quando o visitei no hospital, lhe segurei a mão e o olhei nos olhos, ele já não estava ali. não respondeu à força que quis passar-lhe através da pele. o meu pai já não morava ali. e chorei. chorei antes de todos chorarem porque sabia que já não voltaria a vê-lo. já não voltaríamos a discutir e a magoar-nos um ao outro (como demasiadas vezes aconteceu). já não voltaríamos a sentar-nos numa esplanada a beber cerveja enquanto eu devorava 2 doses de caracóis, à espera que a mãe regressasse da missa. já ninguém me compraria cigarros às escondidas da mãe. já não soariam mais gargalhadas. já ninguém voltaria a dizer "olha, já chegou a comprida!" ninguém. ninguém me amou assim. nunca magoei ninguém como o magoei a ele. nunca. e ali, naquele muro que me gelou num assolador fim de julho, chorei. chorei de arrependimento e de saudade. passou-me a vida pelos olhos. a que vivi , a que vivemos, a que ele não poderia viver mais. é a pessoa que me faz mais falta. é a pessoa que mais raiva me faz ter da vida por não poder vivê-la comigo. por não poder ver as minhas filhas crescer. por não poder levá-las a passear e a fazê-las amar a natureza e os dias longos de verão como fez connosco. chorei sozinha e voltei à fortaleza que construí à minha volta uma semana antes. nunca mais fui a mesma. tento lembrar-me muitas vezes do momento em que perdi a menina que vivia em mim e tenho a certeza que foi nesse dia. no dia em que ele partiu e levou com ele o amor que tínhamos. tenho a certeza que neste momento seria mais condescendente, mais branda, mais flexível. as minhas filhas vão crescer, como eu, sem ter conhecido o pai da mãe. e falam tanto nele. porque eu falo nele, porque lhes mostro fotografias do avô Aníbal com aquele sorriso contagiante. e falo com ele, quando sinto que ninguém me entende. e peço-lhe desculpa por me ter tornado nisto. não foi esta pessoa que ele deixou para trás. não foi. depende de mim mudar. mas passou tanto tempo. vivo há tanto tempo fechada em mim que não concebo outra forma de viver. não admito que me contrariem, que me contradigam, que me desafiem. que me amem. que exemplo estou a dar a estes dois seres pequeninos que dependem de mim?! que lembranças lhes estou a cravar na memória?! tenho tantas vezes vontade em desaparecer por sentir que faço mal a demasiadas pessoas. obrigo-me a estar presente em ocasiões especiais (ou casuais) por respeito ao pai delas que, apesar dos pesares, das discussões constantes, do meu tom ríspido e arrogante, me ama e quer que continuemos a ser a família que nos propusemos construir. e não consigo corresponder às expectativas. sinto que perdi a capacidade de mudar. mas quero vê-las crescer, quero fazê-las felizes e quero ser feliz com quem me escolheu para o ser.
resoluções?
ser feliz. fazer com que os outros não se coíbam de ser naturais na minha presença. ser feliz. viver em paz.
e já vivi em 5 décadas. e quero e preciso viver muito mais. criar um álbum de memórias que dê prazer folhear quando eu partir... sem deixar ninguém irremediavelmente quebrado.