sexta-feira, 27 de março de 2020

Colo em tempo de guerra.

Sempre fui menina de trocar a rua pelo conforto do lar (sempre, a partir de uma certa idade ou de algumas circunstâncias da vida...). Em dias de preguiça, não troco o pijama por quaisquer vestidos ou ornamentos e pinturas que me enfeitem o rosto e o cabelo que nestes últimos dias sobrevive desgrenhado. À varanda, do alto deste terceiro andar com a minha Gardunha (ao longe) e um pedacinho da Estrela a perder de vista, não há condutor ou transeunte de beira de estrada com lupa para me observar, para trespassar as quatro imensas paredes que nos separam do resto do mundo nestes últimos 14 dias. Saio de quando em quando com as miúdas para quebrar rotinas impostas e dissipar energias acumuladas por este isolamento. Saímos de casa e elevo a voz com um vinculado "a primeira a tocar em alguma coisa, parede ou botão, volta imediatamente para casa". Elas cumprem, envolvem-se nos braços uma da outra, encostadas a mim para sair imaculadas do elevador, em que cuidadosamente acciono cada botão com o cotovelo, não vá o diabo tecê-las! Saímos pelo portão da garagem (aberto igualmente com o cotovelo) e respiramos enquanto atravessamos um corredor rodeado de pinheiros e cheiro a liberdade, que saudamos com os braços erguidos, acompanhados com uma inspiração profunda. Penso que as ensinei a fazê-lo para guardarem aquele cheiro no cantinho da memória, caso tenhamos que lhe recorrer quando até essas fugidas nos forem proibidas!
Antes de nos deitarmos a correr em perseguição conjunta num campo que outrora foi palco de disputas entre escolas, pisamos a terra húmida com os pés nus e sopramos dentes de leão com a força que julgamos ser capaz de enviar para longe todos os papões que nos assombram as jornadas!
Regressamos então à "prisão" segura, uma vez mais sem em nada tocar, e à rotina, entre jogos de esconde e apanha, de construção de castelos e casas e torres e muros que nos isolam. Aprendi que os puzzles são uma boa terapia para mim. Deixam-me absorta das notícias que me assolam os pensamentos 24 horas por dia (mais horas houvesse para preencher o vazio de um cérebro que em mais nada pensa!). Os milhares de sugestões de brincadeiras e atividades para entreter os miúdos são de uma boa vontade incrível, mas não os abro, não percorro o ecrã do telemóvel à procura de mais uma ideia que nos ajude a ultrapassar os dias. Não faço planos (apenas refeições!), deixamo-nos levar pelo passar das horas, dos dias e das semanas que já atravessámos e dos muitos que ainda nos irão ser "oferecidos" por um inimigo sem rosto, sem cheiro, sem imagem! Passei a ter medo de tudo. Não faço compras, não socializo, levo sempre o gel para lhes limpar o meu medo, toquem onde tocarem. Limpo meticulosamente cada divisão e cada superfície porque me exacerba a ideia de que o inimigo possa ter entrado por uma fresta de janela que abro todas as manhãs para que o sol nos ilumine e nos dê alento para o que aí vem! Adormeço com as imagens que rebobinamos do noticiário, todos os dias, ao final de cada dia e que me apavoram. Vejo os vizinhos deste país pequenino tombarem sem ninguém para lhes amparar a queda, sem ninguém para lhes dizer adeus. O que lhes dizem, a esses a quem a esperança não assiste é que "já não posso fazer nada por ti"... e partem, sozinhos. E são amontoados em caixas de madeira, onde as mesmas couberem, à espera que o lume se acenda para lhes evaporar o último sopro. E as camas, os cadeirões, os colchões que se amontoam em corredores porque os quartos já não têm espaço para mais um, os médicos e enfermeiros e auxiliares estão demasiado assoberbados e exaustos com tudo isto. E não desistem. Não baixam os braços. E até eles, esses a quem estupidamente só agora aplaudimos e elogiamos, tombam! E penso, noite após noite, que quando o nível de horror chegar a este jardim à beira-mar plantado, vai ser pior. Todos nós vamos ser postos à prova, TODOS! E, quando tudo terminar (ou apaziguar) vamos continuar, dia após dia a viver com medo, petrificados com qualquer pessoa ou objeto ou divisão ou superfície que não esteja imaculadamente limpo, porque o filme pode estar novamente por detrás das cortinas pesadas de um cinema em remodelação causada pela destruição de outrora.
Por ora, aproveito o tempo que nos dá tempo para vivermos os quatro para os quatro e para mais uns quantos que podemos "visitar" nos ecrãs que nos abrem janelas para o nosso mundinho que sobrevive lá fora. Neste momento, vivo mais intensamente o colo que não consigo dar nos dias normais. Sento-me no chão. Rebolo e sou outra vez menina como elas. Como só elas sabem transformar-me. E volto a ter medo de não ter tempo para voltar a estes momentos quando tudo isto passar, seja lá quando isso for.

A imagem escolhida é uma pintura de Klimt - Mother and Child que traduz a palavra que melhor descreve este recolhimento: COLO.