terça-feira, 19 de março de 2013


Todos os dias te sinto falta... todos os dias te sinto em mim...



"É o teu rosto que encontro. Contra nós, cresce a manhã, o dia, cresce uma luz fina. Olho-te nos olhos. Sim, quero que saibas, não te posso esconder, ainda há uma luz fina sobre tudo isto. Tudo se resume a esta luz fina a recordar-me todo o silêncio desse silêncio que calaste. Pai. Quero que saibas, cresce uma luz fina sobre mim que sou sombra, luz fina a recortar-me de mim, ténue, sombra apenas. Não te posso esconder, depois de ti, ainda há tudo isto, toda esta sombra e o silêncio e a luz fina que agora és." 

José Luís Peixoto, in 'Morreste-me'





quinta-feira, 14 de março de 2013

JLP


Abandona os gestos desnecessários, abandona o peso e a forma do corpo, abandona o chão. Tens altura suficiente para entrar. Podes sentar-te à frente e podes levantar os braços nas descidas. Subirás devagar, aproveita para ver a paisagem. Descerás de repente, num instante de onomatopeias: zut, vrrrum. Grita. Se quiseres podes gritar. O vento gritará ao teu lado. Tens o cinto de segurança posto, já não podes voltar atrás, já não podes abandonar o ritmo a que bate o teu coração, o teu coração, o teu coração. Respira, a vida é feita de estar vivo. Não vás de olhos fechados, abre os olhos e respira, repara neste momento da tua vida: estás numa montanha-russa, mas nem estás numa montanha, nem estás na Rússia.

José Luís Peixoto



segunda-feira, 11 de março de 2013



"Pinceladas de barro cor da pele cobrem minhas cicatrizes como um carinho
Todas as manhãs, antes de me iludir com a vida
Lavo no escuro adocicado minhas pequenas pupilas
Escorrego sabão nos círios da pequena boneca
Cubro a alma com uma pitada de lápis nas sobrancelhas finas
Faço elas ficarem bem grossas com perfil de misteriosa
Minhas mãos já sabem de cor a forma de cada olheira
Profunda de tanta chuva que tomou
É como se cobrisse minha alma todas as manhãs
É como se a mim só eu conhecesse
Quando estou definitivamente uma pintura de Basquiat
Olho-me no espelho
O que vejo
Um touro, uma donzela, um insecto, uma traça, um sonho
Não sei bem se vejo ou deliro 
Mas crio coragem e abro a porta
Quase sempre venta e lacrimeja
Coloco a bagagem nas costas
De costas me olho mais uma vez no espelho
Sim, agora estou pronta
O exagero, o Destino me perdoe, tenho pressa, saiam da frente
Que meu cansaço derrete meu barro e a escultura cai
Tenho pressa, minha vida é passageira
E meu escudo de pele moldado por cicatrizes
Quando chego em casa, sento, tiro os sapatos, calço a minha essência e choro
Quando a obra facial se desfaz, coloco as mãos sobre o rosto e sorrio
Acendo uma vela, abro a torneira e lavo minha alma
Agora, nua".

Poema autobiográfico da actriz Bárbara Paz.